A música da passagem

Minhas fontes confirmam: é ‘Gabriel’s oboe’ a música que vamos ouvir quando entrarmos em uma outra dimensão; quando partirmos desta para uma melhor; quando entrarmos no paraíso, se assim crermos e merecermos. O tema de Ennio Morricone nos acompanha como um tapete de boas vindas, um prenúncio de tempos melhores para quem sofreu tanto deste lado de cá. Ao sopro do oboé ele soa como um nascimento. Na transcrição para violoncelo, de Yo-Yo Ma, mais se parece com um renascimento. Não se sente como uma travessia de portal, mudança de cenário, mas algo menos material, uma densidade diferente, talvez mais rarefeita, mais leve, sutil. Em qualquer das versões é uma música que nos devolve um bem estar, uma paz de espírito que se imaginava perdida para sempre. Ela faz ressoar cordas de uma inocência que se acreditava integrada à natureza, parte de uma história esquecida.

E assim se ouvirá, nesse reencontro em uma idade já sem tempo, devolvidos que seremos a uma existência sem história. Também sem memória, o que talvez será ressentido, porque sem nada para repetir.

Estamos despreparados para essa nova fase, acredito. A música é de beleza sem respiro, quase sufocante. Mas o chão escapa, desliza à tentativa dos passos.

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Em fim

Quantas vezes não imaginei os encontros que poderiam ter acontecido, os grandes amigos que poderiam ser conhecidos, os pares românticos, almas gêmeas ou irmãs de alma, se uma iniciativa tivesse havido, uma palavra arriscada, em tantas situações do passado, nas salas de espera, nos momentos vazios em que se veem lado a lado desconhecidos, em cafés, bibliotecas, museus, danceterias? Aquela pessoa especial que faltou se revelar por falta de uma faísca, de uma desculpa para começar uma conversa. Eu me arrependo tanto da falta de ousadia em tentar por medo de parecer ousado, impertinente. Pelo risco de levar um não. O medo da rejeição, de um desprezo, de todo abandono.

Agora me dói a ausência de cada uma dessas pessoas possíveis, agora que me vejo sozinho pelas escolhas erradas que imagino ter feito. Falta alguém. Sempre falta. E faltam as chances, as trilhas por onde andar, que parecem apagadas, partidas, terminadas. Em cada fantasma um arrepio do que não foi.

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Enxugar a alma

Fim de tarde de um domingo na avenida Paulista aberta às pessoas, fechada aos carros. Caminho lentamente de volta para casa e paro para ver as inúmeras barracas de artesanato, e paro ainda mais para ouvir os artistas cantando quase sempre canções conhecidas, antigas, presentes sempre na consciência. Um semicírculo de pessoas acompanha a cantora que começa ‘Pais e filhos’, da Legião Urbana. Estremeço na volta a um passado que está ali inteiro comigo, na música que continua inteira numa vida suspensa em algum lugar entre o tempo da saudade e o das irreversíveis perdas. O público quase grita na catarse da afinidade, do reconhecimento. É como se cantar junto costurasse junto o que vai se desfazer daqui a pouco, daqui depois. ‘O que você vai ser quando você crescer?’

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Do banho-maria à dissolução

Foi a mãe que disse à menina “que na minha idade as pessoas estão em banho-maria, e que eu tinha de ter paciência. Eu achei que fosse uma brincadeira com o meu nome. Banho-maria-carmem, mas depois entendi que estou mais ou menos numa travessa de vidro cozinhando muito lentamente em cima da água, pra eu não queimar, e uma hora eu virar alguma coisa.” (Mariana Salomão Carrara, ‘se deus me chamar não vou’, editora Nós). Como se a transformação fosse resultar sem acidentes ou sem ultrapassar o limite do tempo. Como se queimar estivesse distante; se evaporar, imprevisto. Quantos não estarão ainda esperando o ponto certo? Como se houvesse um ponto certo.

Como se chegar a algo sólido fosse destino. E se sólido fosse desejável até que a curva invertesse o sentido. De um corpo se firmando para se desfazer aos poucos ou muito rapidamente. Quase ao final a menina se queixa do abandono da vigília, da solidão que se percebe inteira:

“… ninguém passa pra conferir se o vento não me levou porque sou inteira sólida. Acho que vem daí a palavra solidão, pessoas tão sólidas que ninguém vem checar se estão ruindo.” (Mariana Salomão Carrara, idem)

Você continua cozinhando em banho-maria? Se ninguém te acompanhasse você ruiria? Se deus te chamasse você iria?

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Ovídio e o nascimento dos ciprestes

Mais de dois mil anos depois é difícil encontrar uma forma e um ritmo favoráveis para ler ‘Metamorfoses’, de Ovídio. De certo não é uma obra de leitura contínua, linear. Se assim for ela perde em interesse à medida que os eventos se mostram um tanto repetitivos nos processos de transformação, com os mesmos recursos para desvendar o surgimento de novas plantas, por exemplo. É quase sempre o resultado de uma vingança de algum deus por alguma falha de um humano ou de outro deus. A lógica se escancara e reduz o efeito da magia no leitor. A não ser quando se fala de uma árvore de nossa predileção, como o cipreste que, segundo Ovídio, desponta da tristeza pela morte acidental do adorado animal de Ciparisso. Há nele uma quietude e um caráter de eternidade que se imprimem ao nosso olhar.

Quando olho para um cipreste, quando demoro em meu olhar, consigo sentir a beleza dos sentimentos expirando de sua superfície.

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